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Imagem de capa da exposição

Ivan Serpa - a expressão do concreto

São Paulo

CCBB SP

27/01/2021 - 02/08/2021

Idioma do conteúdo

Texto Institucional

O Ministério do Turismo e o Banco do Brasil apresentam e patrocinam Ivan Serpa: a expressão do concreto, ampla retrospectiva de um dos artistas mais importantes da arte moderna e contemporânea brasileira. Após passar pelo Rio de Janeiro, a mostra segue para São Paulo, Brasília e Belo Horizonte. A exposição, com curadoria de Marcus de Lontra Costa e Hélio Márcio Dias Ferreira, exibe obras oriundas de diversas coleções das várias fases do pintor abrangendo sua multiplicidade estética e técnica. Pinturas do período concretista; peças de caráter expressionista, da fase Negra, que o artista preferia denominar Crepuscular; obras das fases Op-Erótica, Amazônica, Mangueira e Geomântica revelam um aspecto místico do artista. A trajetória de Serpa, ainda que breve, deixou uma marca significativa na história da arte nacional, graças à sua sensibilidade, liberdade e ousadia. Ao apresentar este projeto, o CCBB reafirma o seu compromisso com o acesso à arte por meio do trabalho de um dos expoentes do modernismo no país e a sua contribuição para a identidade cultural brasileira. Centro Cultural Banco do Brasil

Ivan Serpa

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O Ministério do Turismo e o Banco do Brasil apresentam e patrocinam Ivan Serpa: a expressão do concreto, ampla retrospectiva de um dos artistas mais importantes da arte moderna e contemporânea brasileira. Após passar pelo Rio de Janeiro, a mostra segue para São Paulo, Brasília e Belo Horizonte. A exposição, com curadoria de Marcus de Lontra Costa e Hélio Márcio Dias Ferreira, exibe obras oriundas de diversas coleções das várias fases do pintor abrangendo sua multiplicidade estética e técnica. Pinturas do período concretista; peças de caráter expressionista, da fase Negra, que o artista preferia denominar Crepuscular; obras das fases Op-Erótica, Amazônica, Mangueira e Geomântica revelam um aspecto místico do artista. A trajetória de Serpa, ainda que breve, deixou uma marca significativa na história da arte nacional, graças à sua sensibilidade, liberdade e ousadia. Ao apresentar este projeto, o CCBB reafirma o seu compromisso com o acesso à arte por meio do trabalho de um dos expoentes do modernismo no país e a sua contribuição para a identidade cultural brasileira. Centro Cultural Banco do Brasil

Texto Curatorial

Ivan Serpa e sua Multiplicidade Depois da Segunda Grande Guerra, o modernismo internacional viu-se diante de um desafio: reconstruir esteticamente o Ocidente utilizando a racionalidade dos processos de seriação industrial, acrescida de sensibilidade humanista e romântica. No Brasil, surgiu uma talentosa geração no cenário artístico e, entre tantos, desde o início destacou-se o nome de Ivan Serpa, artista e mestre, inquieto criador, protagonista de um movimento concretista que integrou valores internacionais e aspectos particulares da realidade brasileira. Após um período de grande repercussão das suas obras abstratas geométricas, o artista viajou para a Europa. Travou contato direto com os grandes mestres da pintura e percebeu que lhe faltavam conhecimentos técnicos na arte de pintar. Em seu retorno ao Brasil, já nos anos 60, experimentou outras linguagens. Produziu obras que estabeleciam contato com os movimentos da abstração considerada informal, com a figuração expressionista, além de criar novas técnicas gráficas. Chegou a retomar a abstração geométrica, por vezes mesclada ao figurativismo, e não se furtou a usar inspiração mística no final da carreira. A figuração aparece nas séries Bichos e Mulheres e bichos; são imagens contundentes, repletas de violência e sensualidade. Serpa captou esse novo cenário e dele se apropriou à sua maneira, numa linguagem sensual, dramática e tensa, na qual o corpo feminino é abrigo de uma gráfica barroca. A violência das guerras pelo mundo e o clima de frustração causado pela destruição dos projetos de transformação social e política no Brasil fazem com que Ivan Serpa, premonitoriamente, anuncie tempos de chumbo e de medo, no potente grito pictórico de tétricas imagens na série de pinturas normalmente chamada de Negra e que o artista preferia denominar, poeticamente, de Crepuscular. No trabalho como restaurador de obras raras em papel, função que desempenhou como funcionário da Biblioteca Nacional, observou atentamente a ação de cupins e produziu obras que chamou Anóbios, com uma trajetória microscópica que delineava elaboradas filigranas, pequenos labirintos observados e recriados pelo artista. As estratégias da pop art atuaram como afirmação da liberdade, bem como instrumento essencial da criação. Mas foi, através de certos procedimentos oriundos da op art, que o pintor reencontrou a imposição da ordem, do ritmo, da modulação e da gráfica, que marcaram as estratégias estéticas da arte geométrica, ainda na década de 1960. Suas telas foram compostas por elementos articulados, jogos de armar e amar, e suas cores foram vibrantes, tropicais e populares. Depois de tantas imagens e vida percorrida, o artista deixou seu legado em apenas duas décadas. Mas, antes de partir, retornou parabolicamente ao seu princípio e à sua essência, produziu com geometria a fase Geomântica. Enquanto alguns cobravam do pintor coerência com estilos e vertentes estéticas, ele respondia com ousadia e liberdade. No mundo contemporâneo, somente a instância artística garante ação criativa e semântica ao ser humano, impedindo que as grandes redes de comunicação façam de cada usuário apenas uma figura incapaz de articular e definir os jogos de significados conectados a uma trama virtual e global. Exemplos como os de Ivan Serpa são lições permanentes; fornecem a régua e o compasso para a criação da ousadia e da liberdade essenciais para a vida humana. Hélio Márcio Dias Ferreira e Marcus Lontra (curadores)

Ivan Serpa

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Ivan Serpa e sua Multiplicidade Depois da Segunda Grande Guerra, o modernismo internacional viu-se diante de um desafio: reconstruir esteticamente o Ocidente utilizando a racionalidade dos processos de seriação industrial, acrescida de sensibilidade humanista e romântica. No Brasil, surgiu uma talentosa geração no cenário artístico e, entre tantos, desde o início destacou-se o nome de Ivan Serpa, artista e mestre, inquieto criador, protagonista de um movimento concretista que integrou valores internacionais e aspectos particulares da realidade brasileira. Após um período de grande repercussão das suas obras abstratas geométricas, o artista viajou para a Europa. Travou contato direto com os grandes mestres da pintura e percebeu que lhes faltavam conhecimentos técnicos na arte de pintar. Em seu retorno ao Brasil, já nos anos 60, experimentou outras linguagens. Produziu obras que estabeleciam contato com os movimentos da abstração considerada informal, com a figuração expressionista, além de criar novas técnicas gráficas. Chegou a retomar a abstração geométrica, por vezes mesclada ao figurativismo, e não se furtou a usar inspiração mística no final da carreira. A figuração aparece nas séries Bichos e Mulheres e bichos; são imagens contundentes, repletas de violência e sensualidade. Serpa captou esse novo cenário e dele se apropriou à sua maneira, numa linguagem sensual, dramática e tensa, na qual o corpo feminino é abrigo de uma gráfica barroca. A violência das guerras pelo mundo e o clima de frustração causado pela destruição dos projetos de transformação social e política no Brasil fazem com que Ivan Serpa, premonitoriamente, anuncie tempos de chumbo e de medo, no potente grito pictórico de tétricas imagens na série de pinturas normalmente chamada de Negra e que o artista preferia denominar, poeticamente, de Crepuscular. No trabalho como restaurador de obras raras em papel, função que desempenhou como funcionário da Biblioteca Nacional, observou atentamente a ação de cupins e produziu obras que chamou Anóbios, com uma trajetória microscópica que delineava elaboradas filigranas, pequenos labirintos observados e recriados pelo artista. As estratégias da pop art atuaram como afirmação da liberdade, bem como instrumento essencial da criação. Mas foi, através de certos procedimentos oriundos da op art, que o pintor reencontrou a imposição da ordem, do ritmo, da modulação e da gráfica, que marcaram as estratégias estéticas da arte geométrica, ainda na década de 1960. Suas telas foram compostas por elementos articulados, jogos de armar e amar, e suas cores foram vibrantes, tropicais e populares. Depois de tantas imagens e vida percorrida, o artista deixou seu legado em apenas duas décadas. Mas, antes de partir, retornou parabolicamente ao seu princípio e à sua essência, produziu com geometria a fase Geomântica. Enquanto alguns cobravam do pintor coerência com estilos e vertentes estéticas, ele respondia com ousadia e liberdade. No mundo contemporâneo, somente a instância artística garante ação criativa e semântica ao ser humano, impedindo que as grandes redes de comunicação façam de cada usuário apenas uma figura incapaz de articular e definir os jogos de significados conectados a uma trama virtual e global. Exemplos como os de Ivan Serpa são lições permanentes; fornecem a régua e o compasso para a criação da ousadia e da liberdade essenciais para a vida humana. Hélio Márcio Dias Ferreira e Marcus Lontra (curadores)

Biombo Concretista

Óleo sobre madeira 160x210cm

Ivan Serpa

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Biombo Concretista, 1952 Óleo sobre madeira 160x210cm A expressão “arte concreta” foi criada em 1930 pelo artista holandês Theo Van Doesburg. Ao contrário do que muitos pensavam, essa expressão não indicava um movimento estético oposto ao Abstracionismo. Para Van Doesburg, não havia sentido chamar de arte abstrata obras que não eram figurativas. No seu entender, o simples fato de passar uma imagem para a tela já é uma abstração. Por outro lado, ele dizia que os artistas que trabalhavam apenas com elementos plásticos – a cor, a linha, as formas, elementos matemáticos e o próprio material usado – estes sim, faziam uma pintura concreta. No Brasil, o jovem Ivan Serpa começa a pintar no início dos anos 1940. A partir de 1946, tem aulas de desenho, gravura e pintura com o austríaco Axl Leskoschek, que despertam nele interesse pelos processos artesanais da criação artística, pela primazia da linha, do elemento gráfico como estruturador da composição artística, e pelo ritmo das formas. Essa busca pela simplicidade encontra seu rumo a partir do contato com Mário Pedrosa, que faz surgir no artista um interesse acentuado pelo concretismo. Serpa entra em contato com as obras de artistas concretos, como o suíço Max Bill, na 1ª Bienal Internacional de São Paulo em 1951, na qual ganha o prêmio de Jovem Artista com o quadro “Formas”. Diante disso, abandona em definitivo as referências à realidade e, mergulhando na abstração, se presta a recompor temas mais clássicos da pintura, explorando pureza de cores e formas orgânicas, além de menções figurativas a partir de moldes geométricos com organização matemática, trabalhando de maneira extremamente precisa a figura e o fundo. A pintura neste tríptico de 1952, montado sob a forma de um biombo, apresenta formas reduzidas, geométricas, típicas desta fase de Serpa. Há limpeza no traço e simplicidade na escolha das cores que se destacam – preto, branco, e as primárias azul e vermelho. Há, ainda, uma inteligente sugestão de movimento, proposta pela angulação das linhas finas e formas bem definidas. A brincadeira com os ângulos se acentua pela própria estrutura sanfonada do biombo. Suas dobraduras dividem algumas das formas, o que altera a perspectiva dentro do jogo de correlações entre as formas e cores no espaço compositivo da obra. Conforme a luz incide sobre as folhas, a depender do posicionamento do observador, os elementos geométricos podem ser percebidos com diferentes angulações e intensidades cromáticas, ou seja, sofrem distorções perceptivas tanto em suas singularidades quanto na totalidade do arranjo.

Sem Título

Óleo sobre Madeira 203x67cm

Ivan Serpa

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Sem título, 1957 Óleo sobre Madeira 203x67cm A busca de integração entre os movimentos internacionais e os aspectos específicos da realidade brasileira faz surgir entre nós um movimento concretista peculiar e inusitado no qual a ideia utópica cede lugar a uma urgência de característica cinética e quase imediata, entendendo os métodos construtivos apenas como essência de um processo criativo e a eles introduzindo cores e volumes inesperados, articulando um vocabulário poético que valoriza aspectos de origem popular e vocação libertária. A pintura de Serpa apresenta rigor nas obras mais expressivas, e sentimento e cadência naquelas mais estruturadas na forma. Vera Siqueira afirma, inclusive, que “mesmo em sua fase concretista, Serpa não busca uma estratégia formal única e sim uma simplificação da linguagem que não lhe retire o sentido de poesia e espontaneidade”. Há escolhas estéticas que particularizam a produção de Serpa e a distanciam de um formalismo puro, premeditado. Esta obra, por exemplo, apresenta uma série de faixas horizontais em cinza, branco, vermelho, azul claro, azul escuro e preto. Uma fina faixa preta na vertical divide o quadro exatamente ao meio. Poderíamos dizer que existem diferentes planos desses elementos na pintura. Cada um desses planos respeita uma lógica de alternância e espessura dessas faixas. A descontinuidade cromática entre as linhas justapostas cria volume na planaridade. As diferentes extensões estruturam o olhar, alterando o equilíbrio das diferentes zonas da pintura e, inclusive, causando ilusões de ótica. O vermelho justaposto ao preto parece, à primeira vista, mais escuro do que o vermelho justaposto ao cinza, mas são exatamente do mesmo tom. Da mesma maneira, a primeira impressão que se tem ao observar o quadro é a de que as faixas possuem múltiplas espessuras, quando na verdade são apenas duas, uma mais fina e outra mais grossa, com aproximadamente o dobro de largura da primeira. A justaposição e a alternância entre elas que dão a impressão de serem diversas. A formatação precisa do quadro contrasta com a sutil irregularidade dessas linhas, propondo movimento, agilidade, ritmo. Teclas de um piano? Uma pessoa vista de lado correndo? Algo que escorre? O conjunto dos traços pode ser visto apenas como uma sequência harmônica de linhas e cores, assim como pode sugerir figuras abstratas, dependendo da interpretação do espectador. Este é um traço comum na obra de Serpa, que sempre oscilou entre o figurativismo e a arte concreta.

Faixas Ritmadas

Óleo sobre tela 97x130cm

Ivan Serpa

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Faixas ritmadas, 1958 Óleo sobre tela 97x130cm A tela “Faixas Ritmadas”, de 1958, é outro exemplo de como a pesquisa sobre a estrutura do quadro – equilíbrio, peso, forma – precisa confrontar-se com a existência da obra no mundo. Composta justamente por uma série de faixas horizontais que se alternam, o quadro divide-se em quatro áreas bem definidas e que apresentam um mesmo conjunto de elementos. No centro da tela, onde estas áreas se tangenciam, sugere um espelhamento entre o lado esquerdo e o lado direito da pintura. Como num espelho real, há uma distorção naquilo que é imagem. No entanto, por tratar-se de uma composição bidimensional e chapada sobre o suporte, o que o artista busca colocar para o observador é uma experiência ótica de distorção, questionando o que exatamente está sendo refletido ou não no arranjo. A estrutura do quadro parece simples, mas os pequenos desvios de ângulo e ordem imprimem instabilidade ao conjunto. A linha vertical que surge no centro do quadro, talvez por alargar-se nas extremidades, faz com que a estrutura pareça dobrar-se para trás, mas esse movimento é distorcido, imprimindo um choque entre as linhas que gera certa confusão visual, ainda que tudo ali seja limpo, puro, plano. Esta pintura, realizada entre a Exposição Nacional de Arte Concreta (1956/1957) e a publicação do Manifesto Neoconcreto, de 1959, antecipa o que se defendia neste texto. Uma das iniciativas da arte Neoconcreta, segundo Ferreira Gullar, era se opor “particularmente em face da arte Concreta levada a uma perigosa exacerbação racionalista” e tender a processos experimentais capazes de incorporar a subjetividade humana. O manifesto postula, ainda, que as noções de tempo, espaço, forma e cor, quando integradas numa mesma obra, têm a capacidade de tornar o vocabulário geométrico utilizado uma “expressão de realidades humanas complexas”. Pregava-se, justamente, a permeabilidade entre razão e sensibilidade, algo já praticado por Ivan.

Sem título, Circa

Impresso 680x20cm

Ivan Serpa

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Sem título, Circa 1959 Impresso 680x20cm O Grupo Frente surgiu com Ivan Serpa, que já ministrava aulas para um grupo de alunos no MAM no Rio de Janeiro. Nessas aulas, segundo o crítico Mário Pedrosa, se cultivava a liberdade completa de expressão. No Museu, Serpa forma Hélio Oiticica, Décio Vieira, Aluísio Carvão, entre muitos outros artistas que viriam a integrar o grupo e, eventualmente, ser reconhecidos como grandes nomes da arte brasileira. Ferreira Gullar conta que, certa vez, em uma conversa com Serpa, este viu escrito em um papel a palavra “frente”; perguntou, então, a Gullar o que era, e o mesmo lhe respondeu que havia escrito em seu caderno tal palavra para demarcar a capa. Segundo Gullar, foi daí que Serpa teve a ideia do nome “Grupo Frente”. Apesar de informados pelas discussões em torno da abstração e da arte concreta, com obras que trabalham sobretudo no registro da abstração geométrica, o grupo não se caracterizava por uma posição estilística única, nem reivindicava padrões formais restritos, sendo o elo entre seus integrantes a rejeição à pintura modernista brasileira de caráter figurativo e nacionalista. O grupo estava interessado em toda manifestação estética livre. Nessa época, Ivan trabalha com formas geométricas e objetivas, realizadas em grande parte com materiais industriais e texturas neutras. Ele já havia, também, começado a trabalhar na Biblioteca Nacional, no setor de restauração, o que lhe possibilitou a experimentação de novas técnicas de colagem e impressão. Havia uma enorme diversidade no que se refere às técnicas e materiais utilizados por Serpa e pelos demais integrantes do Grupo, para os quais a linguagem geométrica é, antes de qualquer coisa, um campo aberto à experiência e à indagação. Pode-se ver muito da trajetória de Ivan enquanto professor e integrante do Grupo Frente neste experimento geométrico. O mesmo pode ser considerado um “Livro de artista”, “livro objeto” ou “livro arte”, terminologias que, no sentido estrito, são utilizadas para designar trabalhos artísticos desenvolvidos em formato de livro, típicos de experiências conceituais realizadas a partir da década de 1960. Aqui, o estudo da forma, dos planos e das cores se completa no gesto físico do indivíduo que, de forma lúdica, se propõe a experimentá-lo, manuseando a obra, abrindo e fechando as suas páginas, num ciclo sem começo, meio ou fim definidos. Diferentemente do livro de Gullar que inspirou o nome do Grupo, aqui não há indicação alguma sobre qual é a frente, qual é o verso e qual borda é para cima ou para baixo. Estas distinções, na verdade, pouco importam. A questão central da experiência artística é introduzir o interlocutor em uma dinâmica concreta, sensorial e livre. Cada pessoa poderá, a partir de sua interação com a obra, atribuir-lhe sentidos e poéticas próprias.

Sem Título

Colagem, calor e pressão sobre papel 46x33cm

Ivan Serpa

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Sem título, 1954 Colagem, calor e pressão sobre papel 46x33cm No início da década de 1950, Serpa começou a trabalhar na Biblioteca Nacional, na seção de restauração de livros, e suas colagens beneficiam-se dessa experiência. Ele desenvolve uma técnica numa máquina que fortalecia papéis fragilizados, colados sob pressão e calor numa nova base de celulose quase transparente. Esta é uma de uma série de colagens do artista explorando recortes geométricos de círculos e retângulos, em tons que variam sobretudo entre o laranja e o preto, remetendo ao anoitecer. As finas camadas de papel, texturizadas e com diferentes graus de transparência, sobrepostas, fundem-se criando colorações diversas e sugerindo, mais do que uma tridimensionalidade, uma sensação de “ar” entre os diversos planos da colagem. As figuras do quadro são estáticas, porém sugerem movimento, como um astro que se move no céu, uma luz que irradia ou algo distante, cada vez mais. O laranja do retângulo no canto direito superior sobre os tons terrosos do círculo e o fundo preto cria diferentes camadas de cor que remetem ao calor do pôr-do-sol; o fundo preto, a um céu escuro; os retângulos, a edifícios. No entanto, a interpretação é livre, visto que a não figuração objetiva de nenhum desses elementos – não há sol ou céu ou edifícios na colagem, apenas um círculo, o recorte de papel original de onde o círculo foi recortado com formato de meia-lua, e alguns retângulos – é o elogio do jogo formal, mas com risco e tensão. Se por um lado o quadro pode ser lido como uma cena vista de uma janela do centro do Rio, por outro ele é pura estrutura, equilíbrio e rigor. Parece que estamos diante de um exercício prazeroso e lúdico de um artista em face ao seu material. As tiras de papel translúcidas, as irregularidades, o semicírculo, sugerem sobras de recortes com as quais Serpa joga sobre o “tabuleiro” da obra. A volumetria sutil, a sucessão de planos, os vários tons que o artista obtém sobrepondo os diferentes papéis equilibram-se na colagem, balizados pelos diferentes elementos. A fração de papel em semicírculo, por exemplo, encontra uma espécie de complemento no círculo amarelado logo acima. Todos os recortes são alterados por ao menos um outro, sobre ou sob ele, ocupando simultaneamente vários planos da colagem e criando cores e espaços na obra. Ao olharmos com atenção para a colagem, vemos o quão complexa é a criação da obra. No entanto, como se fosse um móbile bidimensional, tudo ali está serenamente em equilíbrio e, ao mesmo tempo, suspenso no ar. Chama a atenção que o ano de realização destas colagens coincide com o surgimento do Grupo Frente. No entanto, elas apontam para outros campos de pesquisa: cor, textura, fusão e matéria não são as questões que interessam aos concretistas. Essas colagens, portanto, indicam o quão plural foi Serpa durante sua trajetória. Walter Zanini, ao comentar a obra de Serpa, dizia justamente que “nenhum pintor brasileiro conheceu neste século e nesse prazo variações e rupturas de conteúdo e forma tão radicais”.

Sem Título

Óleo sobre tela 150x200cm

Ivan Serpa

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Sem título, sem data Óleo sobre tela 150x200cm Em 1952, Ivan Serpa torna-se professor da escola de artes do MAM no Rio de Janeiro, lecionando para crianças e adultos. No Museu ele forma Hélio Oiticica, Décio Vieira, Aluísio Carvão, entre muitos outros, e daí nasce a formação do Grupo Frente, que, apesar de ser considerado marco histórico do movimento Construtivo no Brasil, aceitava pintores de todos os gêneros, inclusive figurativistas. Seus membros eram informados pelas discussões em torno da abstração e da arte concreta, com obras que trabalham sobretudo no registro da abstração geométrica, mas o grupo não se caracterizava por uma posição estilística única, sendo o elo entre seus integrantes a rejeição à pintura modernista brasileira de caráter figurativo e nacionalista. A idéia era romper com as fórmulas pasteurizadas da velha academia, dispondo-se a questionar a arte e caminhar pelos próprios pés. Segundo Pedrosa, o respeito à "liberdade de criação" é o postulado pelo qual lutam acima de tudo. Esta obra, apesar de não ter data exata, faz parte da fase concreta do trabalho de Ivan Serpa, na qual o artista brinca com formas geométricas, cores, alinhamento e equilíbrio, o que é bem representado por esse jogo quase matemático com espirais e quadrados. Serpa foi considerado, por alguns, uma das principais vozes românticas e líricas de uma geometria que se recusava a ser autoritária e impositiva, encarando suas obras através de uma problemática óptico concretista. A duração do Grupo Frente foi curta, de 1954 a 1956 apenas, mas os postulados defendidos por esses artistas foram fundamentais para o reexame da arte produzida no Brasil de então. O rompimento com a tradição, a defesa de uma arte abstrata e autônoma eram novidades em um país que havia recém saído da sua primeira ditadura. A 1ª Exposição Nacional de Arte Concreta, organizada pelos concretos de São Paulo com a colaboração do grupo carioca, torna evidente a distância entre os dois núcleos concretistas, mas também ajuda a revelar a amplitude que a arte abstrato-geométrica de matriz construtiva e concreta havia adquirido no Brasil. Após a mostra, o Grupo Frente simultaneamente rompe com os artistas de São Paulo e começa a se desintegrar. Dois anos depois, alguns de seus integrantes iriam se agrupar para iniciar o Movimento Neoconcreto, um dos mais significativos da arte brasileira.

Faixas em ritmo resultante

Óleo sobre eucatex 83x83

Ivan Serpa

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Faixas em ritmo resultante, 1956 Óleo sobre eucatex 83x83 cm Dentre os artistas da sua geração, talvez Ivan Serpa e Aloísio Carvão tenham sido as principais vozes românticas e líricas de uma geometria que se recusava a ser autoritária e impositiva. Essa visão, de caráter “antropofágico”, cria as bases de uma arte de circulação e de diálogo universais, porém com tonalidades e interpretações brasileiras, que refletem a peculiaridade das nossas raízes culturais. As pinturas de Serpa nesse período refletem uma paisagem construída por linhas e cores articuladas num discurso sensível e inteligente. Esta obra se circunscreve na fase em que o artista experimenta novos materiais como suporte, no caso o Eucatex, um tipo de madeira, e explora com afinco os elementos geométricos. O ritmo ao qual o título se refere resulta exatamente do exercício de justaposição e sobreposição de formas e cores distintas. Apesar da materialidade estática dos elementos, a sensação de movimento se dá na leitura da obra como um todo. Essa sensação é acentuada pelo fato de, nas duas faixas centrais, de cores mais vibrantes, o artista usar, como recurso gráfico, a sobreposição de mais dois elementos geométricos de estrutura parecida, porém com dimensões diferentes – os únicos que apresentam formas arredondadas -, para trazer sinuosidade e musicalidade à obra de maneira simples, nos remetendo a notas musicais ou ao tocar de um violino. A época coincide com o fim do Grupo Frente, liderado por Serpa, ao qual se comparava o Grupo Ruptura, de São Paulo. Pode-se considerar que, em parte, a dissolução do libertário Grupo Frente esteve ligada a divergências entre Serpa e Waldemar Cordeiro, o brilhante e intransigente líder do grupo paulista que, durante a Primeira Exposição Nacional de Arte Concreta, em 1956, o acusou de empregar “um marrom”, cor inaceitável para os rígidos parâmetros do ideário concreto. O texto do Manifesto Ruptura, base do movimento concreto encabeçado por Cordeiro, redigido em 1952, era frontalmente contrário ao naturalismo “errado” das crianças, dos loucos, dos “primitivos”. No entanto, Serpa, cuja atividade didática baseada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro desde o começo dos anos 1950 foi verdadeiramente seminal e que, além de professor, havia pertencido ao núcleo original do atelier de pintura do Hospital Psiquiátrico de Engenho de Dentro, criado em 1946 pela Dra. Nise da Silveira e pelo jovem artista Almir Mavignier, tinha como premissa deixar os alunos livres para fazer o que quisessem, em lugar de fazê-los acreditar que havia uma verdade, e jamais deixou de agir de acordo com o que pregava.

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Técnica mista sobre impresso 10x16cm

Ivan Serpa

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Sem título, anos 60 Técnica mista sobre impresso 10x16cm Na primeira metade dos anos 60, Serpa estava em uma fase abstrata que se convencionou chamar de “Informal”, título com o qual o artista não concordava, por não se tratar de uma informalidade completa a concepção dessas obras. Nessa época, deu início aos trabalhos de séries como “Anóbios”, “Antiletra”, “Bichos”, “Mulheres e Bichos” e participou das mais importantes exposições ocorridas ao longo da década, como Opinião 65, Opinião 66 e Nova Objetividade Brasileira, que reuniram os grandes nomes da geração que emergia nas artes plásticas naquele momento. Nesse período, ele se torna menos determinista em relação ao concreto e mais experimental, passando a incorporar manchas, gotas de tinta, desenhos infantis e até gestos em suas obras, o que resulta em uma série de imagens que transitam entre o abstrato e o figurado. A composição em questão, uma intervenção em nanquim e cores, possivelmente obtidas com tintas e canetas hidrográficas coloridas, sobre um cartão-postal impresso com informações do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, onde o artista trabalhava, não tem data exata de realização. Sabe-se, no entanto, que este é um dentre alguns trabalhos similares que Serpa produziu em 1965. Estas obras parecidas também têm como ponto de partida os cartões postais do MAM sobre os quais o artista realizou intervenções figurativas utilizando técnicas e materiais semelhantes. A partir do conteúdo original impresso, Ivan, com linhas e traços sinuosos cria figuras lúdicas preenchidas com cores vibrantes, e os sombreamentos e a volumetria são obtidos pela técnica de pontilhismo. Com uma graça e ritmos impressionantes, ele revoluciona o conteúdo do cartão de forma livre e criativa, transformando-o em uma obra de arte. O uso do bico de pena, da caneta-tinteiro ou esferográfica, foi comum nos seus trabalhos em muitos momentos. Segundo o Prof. Dr. Hélio Márcio Dias Ferreira, idealizador e curador da exposição, deu-se assim a produção da série Antiletra. O desenhista se debruçava sobre um papel impresso, já existente, contendo um texto qualquer, e cobria pacientemente cada letra com um frenesi alucinante, criando zigue-zagues, rabiscos, voltas e revoltas “como numa caligrafia de outro planeta, como cartas ao sensível, apenas visíveis ao coração. Letra por letra, num frenético ritmo de dança das mãos sobre as ideias, criando poética de outra dimensão”, em uma incrível combinação de liberdade e técnica. Assim foram feitos trabalhos “como que psicografados”, nas palavras de Hélio Márcio, sobre os mais variados impressos, folhas isoladas, envelopes, cartões e até mesmo um Antilivro, exibido nesta exposição.

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Óleo sobre tela 165x200cm

Ivan Serpa

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Sem título, 1961 Óleo sobre tela 165x200cm Em 1957, após a dissolução do Grupo, Ivan recebeu o Prêmio de Viagem ao Estrangeiro, participando do VI Salão Nacional de Arte Moderna, no Rio de Janeiro. Em 1958, viajou para a Europa, gozando da honraria que recebeu no ano anterior e só regressou definitivamente ao seu país de origem em 1959. “Na Europa, distante de todas as influências mais próximas do meio brasileiro, pude ver e julgar com maior independência tudo o que fazíamos aqui. Verifiquei, então, que a arte concreta não correspondia à realidade. […] Em dezembro de 1959, ao voltar da Europa, passei cinco meses sem pintar e procurei julgar o que vinha fazendo. Li e pesquisei atentamente. Ao voltar a pintar, notei que havia uma profunda modificação em tudo que fazia.” Na volta definitiva ao seu país de origem, Serpa, percebendo que o caminho inexorável da abstração geométrica levaria a uma ortodoxia formal, à elaboração de conceitos e à ausência total da práxis artística, que a ele tanto agradava, não retomou imediatamente a linguagem concretista, mas se dedicou a trabalhos de linguagem inédita e múltipla, de modo que entre o fim dos anos 1950 e começo dos 1960, o trabalho ganha novos contornos. Serpa revê a sua posição concreta e passa a incorporar elementos menos determinados: como gestos, manchas e respingos de tinta. Primeiramente se colocou diante de grandes telas e realizou pinturas que pareciam arte abstrata informal, mas que, segundo o próprio artista, eram fruto de observação de mapas e material cartográfico, que pôde conhecer durante o tempo que trabalhou como restaurador de obras raras da Biblioteca Nacional. Essas telas mostram manchas e riscos que passam por tons terrosos, alaranjados, pretos e azuis, semelhantes aos que vemos nesta obra, que remete a uma vista aérea parcial do globo terrestre, uma porção irregular de terra cercada por mar. Há ainda preocupação com a luminosidade das cores, tom, textura, movimento, ritmo, mas sem o rigor geométrico observado em obras anteriores.

Joana D'arc

Têmpera e óleo sobre tela 122x122cm

Ivan Serpa

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Joana D’Arc, 1962 Têmpera e óleo sobre tela 122x122cm Nos anos 1950 e 1960, a Europa vivia a modernidade, com novas linguagens explodindo em um mundo pós-guerra. Ivan Serpa, nesse meio tempo, passou um período no “Velho Mundo” e, ao contrário do que todos possam supor, não foi a França que mais o impactou, mas sim a Espanha. Ao voltar, ele falava com entusiasmo da visita às pinturas das cavernas de Altamira – que um dia também encantaram Picasso e os modernos. Na volta definitiva ao seu país de origem, Serpa reviu sua linguagem concretista e passou a se dedicar a trabalhos de linguagem inédita e múltipla, oscilando entre o abstrato e o figurativo. Por isso foi criticado e acusado de não ter estilo, mas não se tratava disso. Serpa possuía um domínio de linguagens tão grande que se permitiu deleitar com experiências de diversas expressões artísticas, à melhor maneira “picassiana”! À época, Serpa trabalhava já há alguns anos na Biblioteca Nacional como restaurador de livros antigos e, como sabemos, os grandes inimigos das prateleiras de bibliotecas são as térmitas (cupins) e os anóbios (brocas ou carunchos, tipos danosos de coleópteros). A grafia criada por cupins na ânsia de devorar papéis acabava por deixar um risco sinuoso nas páginas dos livros, documentos e mapas, o que não passaria despercebido aos olhos atentos de Serpa. Desta grafia particular Ivan tirou inspiração para formas labirínticas e desenhos que deram origem a uma série intitulada Anóbios, na qual é possível identificar figuras a partir de pequenas marcas coloridas, dispersas e aparentemente aleatórias. Nesta composição abstrata, por exemplo, em um primeiro momento não é possível identificar nenhuma figura pretendida com a disposição dos elementos. A princípio se faz notar apenas a presença do gesto do artista nos movimentos realizados para espalhar as camadas de tinta sobre o suporte. Ao nos determos um pouco mais sobre a tela, no entanto, podemos identificar, a partir do conjunto de linhas, manchas e respingos em tons terrosos, a imagem de uma pessoa montada em um cavalo. Há na obra, ainda, algo que remete a pinturas rupestres, possivelmente inspirada pelas cavernas de Altamira, além de uma forte sugestão de movimento. Mesmo utilizando manchas e respingos, Serpa não se considerava um “informal”, pois, para ele, tais elementos participavam de um esquema que revelava intenção construtiva. Seus quadros da época tinham ritmo, consistência, coesão. Eram, portanto, estruturas. É possível que Joana D’Arc seja a obra mais importante dessa fase. Seus traços finos, manchados e irregulares carregam um lirismo que permite ao observador vivenciar uma sensação de leveza e fluidez.

Sem Título

Óleo sobre tela 95x115cm

Ivan Serpa

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Sem título, 1963 Óleo sobre tela 95x115cm Serpa iniciou sua carreira como artista no Brasil, no período pós ditadura de Getúlio Vargas. A liberdade criativa e inovadora proposta por JK e a construção de uma capital moderna, em pleno planalto central brasileiro, reuniu, então, uma geração de artistas repletos de coragem e ousadia. No entanto, no ano seguinte ao desta obra de 1963, o regime militar viria a destruir alvoradas, direcionando o país para uma noite moralista, repressora e violenta. Diante disso, nascia o compromisso com a liberdade e com a necessidade de preparar uma nação para os desafios do futuro, para o enfrentamento com as estruturas oligárquicas implantadas, responsáveis pela desigualdade, pelos privilégios e pela exploração popular. Ivan Serpa, na época, em sintonia com esse compromisso, seguia firme no caminho da experimentação e de uma pintura cada vez mais livre de rígidos padrões. Esta composição faz parte de sua série “Bichos”. A obra tem como cena central duas figuras deformadas que remetem à representação de um corpo humano suspendendo o que parece ser um animal por sua parte traseira e aproximando-a de seu rosto. Realizada com grossas e espessas pinceladas de tinta, poderia, inclusive, ser considerada grosseira e primitiva. No entanto, segundo o artista, os trabalhos desenvolvidos durante essa fase são “figurações abstratas”, oriundas de seu forte interesse, à época, em figuras humanas e em bichos. Transparece nesse conjunto de trabalhos o interesse renovado pela mancha, elemento chave das poéticas abstratas informais que evocam o trabalho da imaginação. O intento de Serpa era de descobrir em cada linha e em cada forma, algo que sugerisse figuras cada vez mais simplificadas e desapropriadas de qualquer compromisso com movimentos artísticos específicos. Para isso, o artista abandonou temporariamente os conceitos estéticos, os padrões de beleza e se distanciou daquilo que a crítica de arte entendia como “bom gosto”. As cores vivas que destacam as duas figuras centrais e os traços irregulares trazem uma sensação de movimento que é quase explicitada pelas duas setas em sentidos opostos, lado a lado, na parte superior do quadro, logo acima da figura do “bicho”. Há uma clara referência sexual na combinação desses elementos. A cor terrosa mais clara ao redor das figuras, compondo o fundo, faz alusão a um ambiente seco, sob um sol forte indicado pelo círculo amarelo e laranja à esquerda. A criatura animal não se assemelha a nenhum bicho conhecido. É possível apenas notar se tratar de um quadrúpede com uma cabeça pequena, dois olhos arregalados, focinho alongado e a boca aberta com os dentes pontiagudos à mostra. Curiosamente, algo em sua expressão alude a um sorriso, enquanto o braço direito da outra figura, “humana”, se projeta para cima de sua cabeça e o esquerdo segura o “bicho” por trás como quem se diverte. A imagem é irreverente, libertária, e retrata uma realidade brasileira mais comum do que muitos podem imaginar. Homem, bicho, calor, seca, sexo. Em contexto, pensando na realidade política da época, a obra suscita uma questão: a figura que identificamos de primeira como animal, besta, bicho, é realmente o único bicho retratado?

Sem título - Da série bichos

Óleo sobre tela 123x133cm

Ivan Serpa

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Sem título, 1962 - Da série bichos Óleo sobre tela 123x133cm Ainda nos anos 60, Ivan Serpa se rende de fato ao figurativismo, focando mais especificamente na figuração gestual, com similaridade ao grupo CoBrA, ativo de 1948 a 1951 e cuja defesa da livre expressão e do gesto espontâneo associados à retomada dos imaginários mágico e folclórico transparecem na explosão de cores, no vaivém de linhas que definem contornos e imagens, de modo que o observador se detém numa espécie de jogo lúdico. Bichos e figuras que parecem retirados de um caderno de desenhos infantil - ou seriam totens e/ou imagens religiosas de povos primitivos? - povoam os quadros, que chamam atenção pelo vigor expressivo e pelo universo de sugestões que trazem à tona. A convergência de tradições artísticas heterogêneas entre os membros do grupo e o impacto da guerra e do nazismo por toda a Europa dão o tom geral do grupo, que ambiciona propor um novo estilo pictórico, além de destinar aos artistas um papel ativo na reconstrução social. Nesse contexto, é essa nova frente que coloca Ivan Serpa próximo de nomes que receberiam a alcunha de Nova Objetividade Brasileira. A criação de objetos de diversos tipos, bem como a defesa de soluções propriamente nacionais, que não sejam cópias do que se produz nos centros internacionais, definem o espírito central das mostras da época, espécie de balanço dos diversos caminhos trilhados pela arte nacional. Tomada de posições políticas, superação do quadro de cavalete, participação corporal, tátil e visual do espectador, eis os ingredientes básicos da nova objetividade, que não almeja ser um movimento artístico, nos termos de Hélio Oiticica. "A nova objetividade", diz ele, "sendo um estado, não é pois um movimento dogmático, esteticista (como por exemplo foi o cubismo e também outros ismos constituídos como unidades de pensamento), mas uma 'chegada' constituída de múltiplas tendências, onde a falta de 'unidade de pensamento' é uma característica importante (...)". Em outras palavras, a exposição não pretende constituir um grupo artístico e sim ser a confluência de diferentes tendências. “Em 1962, comecei a formar, dentro desta pintura, uma certa figuração, de arabescos. Os arabescos lembravam figuras humanas, se bem que algo fantásticas, não proporcionais, sem caráter de mera reprodução”, diz Ivan. As obras dessa fase são, ao mesmo tempo, sofisticadas e populares e parecem buscar, na rigidez do espaço pictórico, o movimento e o ritmo do vento na paisagem. Serpa busca renovar as figuras desmantelando-as, não apenas por meio da forma, mas também por intermédio de borrões e soluções cromáticas sujas. O percurso do olhar pelos desenhos vai revelando os variados interesses e filiações do artista, a começar por sua manifesta admiração pelos desenhos encontrados nas cavernas de Altamira, passando pelo desenho das crianças, constantemente renovado por aqueles que frequentavam seus cursos, até o elenco de procedimentos compulsados pelos artistas adeptos do Expressionismo Gestual, a pintura de ação. Do desenho paleolítico aos desenhos das crianças o que há é o fascínio por uma capacidade mágica, e, nesse sentido, o emprego de pincéis, lápis, varetas de bambu e outros objetos com que ele ataca o papel, dá a dimensão do seu respeito aos instrumentos, quaisquer que sejam eles, como extensões das quais nos valemos para ampliar nosso poder de enfrentamento do mundo.

Garota de Ipanema

Óleo sobre tela 100x80cm

Ivan Serpa

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Garota de Ipanema, 1965 Óleo sobre tela 100x80cm Segundo Ferreira Gullar, o samba “Garota de Ipanema” nasceu no bar Veloso, que hoje tem o nome da música e fica na esquina da Prudente de Morais com a antiga Montenegro, chamada agora de Vinicius de Moraes. Ele diz, “naquela época, minha turma não era a da música, e sim a das artes plásticas, cuja bossa era, então, o concretismo, que tinha seu quartel-general ali perto, (...) no apartamento de Mário Pedrosa. Ali se reuniam, quase toda semana, Ivan Serpa, Lygia Clark, Aluísio Carvão, Amilcar de Castro, Lygia Pape, Abraham Palatnik, Franz Weissmann...” Nas palavras de Gullar, “se a bossa nova resultava numa ruptura com a música popular em voga (...), o concretismo rompia com a tradição modernista nas artes plásticas, cujo principal expoente, na época, era Portinari.” Esta obra de Ivan Serpa, inspirada no samba "Garota de Ipanema", uma das obras-primas da bossa nova, lançada apenas poucos anos antes, faz parte de uma série que ficou conhecida como “Mulheres”, um desdobramento da jornada de experimentação abstrata e figurativa em que o artista embarcou após sua volta da Europa, quando abandonou a rigidez dos preceitos concretistas. Na época, suas obras, a partir de linhas, borrões e manchas, formavam figuras disformes porém identificáveis, algumas incorporando letreiros e a sobreposição e/ou distorção de formas geométricas. A produção foi exposta em mostras importantes, como Opinião 65, Opinião 66 e Nova Objetividade Brasileira, eventos que marcam a difusão de uma nova arte de tendência figurativa, a neofiguração. Os “Bichos”, série de Ivan da mesma época, não demoraram a encontrar figuras de “Mulheres” e, lascivos, como faunos em busca de ninfas, rodeavam o feminino como bestas, ansiosos por luxúria. Nasciam, a partir daí, criações pictóricas e desenhos onde essa dupla conviveu numa linguagem bastante expressionista, até então nunca observada na trajetória do artista. Nesta obra, em particular, parece predominar uma ludicidade em torno da ideia do romance, apontada pelos corações desenhados no peito das duas figuras principais, aparentemente uma mulher e um homem, que parecem derreter, simbolizando o estado apaixonado em que se encontram. Ela, com vários homens passando por sua cabeça; ele, olhando para ela. Não é tanto o sexo que está em evidência, mas o encantamento que, em geral, o antecede. “Ah, se ela soubesse / Que quando ela passa / O mundo inteirinho se enche de graça / E fica mais lindo / Por causa do amor”.

Sem Título

Guache sobre papel 57x74cm

Ivan Serpa

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Sem título, 1965 Guache sobre papel 57x74cm Após um período de grande repercussão das suas obras, Serpa viaja para a Europa e trava contato direto com os grandes mestres da pintura. A partir disso, percebe que lhe faltavam conhecimentos técnicos na arte de pintar. Mais uma vez a técnica e as práticas artesanais constituem o ponto chave de suas inquietações, atitude compreensível por sua função de restaurador de obras raras da Biblioteca Nacional. O próprio Ivan coloca: “Por isso, em 1960, comecei uma nova fase, que foi por muitos considerada como abstracionista, mas que para mim jamais o foi, pois partia de elementos existenciais. Eu usava elementos geográficos, páginas de livros velhos etc., e não apenas malabarismos e virtuosismos técnicos.” A partir de 1963 intensificou-se seu interesse pela figuração, realizando trabalhos como os da “Série Crepuscular” e das séries “Bichos” e “Mulheres com Bichos”, mesclando as figuras muitas vezes com letreiros e a sobreposição de formas geométricas, que foram expostos em importantes mostras da época. Fruto dessa época em que Serpa se distanciou do concretismo e experimentou livremente no campo da abstração, esta obra, de 1965, marca sua fase de figuras e letras. Os traços aqui sugerem um claro perfil humano à esquerda e outro, um pouco menos distinguível, à direita. Os dois parecem se olhar com raiva. Algo no contraste entre os tons de azul e vermelho aliado às letras “M” e “er” sugere - Mer? Mulher? “Quando termino um quadro, poderão dizer que é um mau quadro, mas dirão, ao mesmo tempo, que é um quadro bem realizado. O artesanato é para mim, hoje, algo consciente; convenci-me que há um ponto em que ele é criação… Artesanato, portanto, é o sentido daquilo que é bem feito; é, em última análise, percepção da forma.” explica o artista, em 1965, num texto para a exposição comemorativa do IV Centenário da Cidade do Rio de Janeiro, organizada no MAM-RJ. Com letras e números, o criador fazia nascer no papel uma base sobre a qual interviria em seguida com tintas de cores distintas, dando origem a trabalhos, nas palavras do Prof. Dr. Hélio Márcio Dias Ferreira, idealizador e curador da exposição, “de rara beleza, como numa renda tipográfica e, mais uma vez, como cartas alienígenas que nos levavam ao contato com mundos novos e jamais visitados.” Como um poeta de fumaça e brilho etéreo, Ivan Serpa nos conduzia a uma nova maneira de ver a arte.

Beijo

Óleo sobre tela 100x150cm

Ivan Serpa

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Beijo, 1966 Óleo sobre tela 100x150cm Esta obra faz parte de uma fase do trabalho de Ivan Serpa que se convencionou chamar de nova figuração. Elementos anteriores seguem presentes: figuras formadas a partir de linhas e curvas, movimento, ritmo, cores vibrantes, tons terrosos, números, bichos e formas humanas. No entanto, dentro dessa abstração que apresenta claro rigor formal e domínio técnico, há uma enorme sensibilidade, aproximando a obra do expressionismo. Esta linguagem bastante expressionista começou a ser observada na trajetória do artista em suas fases “Bichos” e “Mulheres”. Para muitos, Ivan Serpa é considerado o “Picasso brasileiro”, sobretudo pela multiplicidade de estilos que apresentou com maestria ao longo de sua vida artística. Nesta obra, especificamente, embora Serpa tenha se mantido livre dos preceitos de um movimento específico, as camadas formadas por linhas que marcam os perfis humanos formando o que pode ser lido como rugas, degraus, ou simbólicas reverberações de algum movimento interno das figuras principais, cujos lábios se tocam em um beijo, fragmentam a imagem e remetem ao cubismo de Picasso. Alguns críticos já lamentaram o exemplo de Pablo Picasso, cuja diversidade de produção tornou-se lendária, argumentando que muitos artistas se perderam ao seguir essas tortuosas pegadas. Esses críticos ponderavam que nem tudo o que um Picasso poderia concretizar sem perder a sua unidade – o seu estilo, afinal de contas – seria realizável por pintores de menos recursos, a não ser com o sacrifício de suas próprias individualidades. Desse ponto de vista, artistas como Serpa seriam vítimas de um fascínio pela multiplicidade que viria a limitar consideravelmente o seu testemunho. É possível, no entanto, que Pablo Picasso não tenha feito outra coisa senão obedecer às exigências de seu tempo ao construir uma obra quase labiríntica. E é possível mesmo que estivesse lutando justamente contra as limitações do que convencionou chamar estilo. Não foi o próprio Picasso quem declarou que o pior tipo de imitação era a que alguém fazia de si mesmo? Seguindo esse raciocínio, Ivan Serpa, por exemplo, seria um artista que teria compreendido, até de uma forma precursora no Brasil, a tarefa do artista moderno como um exercício incessante em busca do novo e do desconhecido.

Cabeça

Têmpera e óleo sobre tela 200x180cm

Ivan Serpa

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Cabeça, 1964 Têmpera e óleo sobre tela 200x180cm Apenas dez anos após essas colagens e a organização do Grupo Frente, e depois de outras tantas experiências plásticas, Serpa apresenta outro lado enquanto artista. Sua face soturna se revela quando surge com suas pinturas crepusculares, conhecidas por alguns como “Série Negra”, talvez o auge da sua fase expressionista, que durou cerca de dois anos e foi fortemente inspirada pela produção do grupo europeu CoBrA, no qual prevalecia o intento de redescoberta da pintura através de figuras que não existissem de fato no mundo. Nessa série, vemos um artista do gesto, da força, da indignação. Telas como esta, marcadas pelo forte contraste entre o preto e o branco, pela ausência de cores vivas nas pinceladas violentas, borradas, encarnam a atmosfera sinistra que toma conta do ambiente político e social de então. A industrialização ampliou desigualdades e transformou a violência e a morte em elementos do cotidiano. A utópica ideia de uma sociedade mais justa, através da democratização dos meios de produção, não resistiu a um sistema essencialmente injusto e dominado pelo capital. A guerra do Vietnã e o golpe militar no Brasil marcam o início da década de 1960 e a arte de Serpa não se alija dessas questões. A figura cadavérica surge da escuridão com todos os orifícios esbugalhados. Boca, olhos, narinas, fundem-se com o negrume do fundo, imprimindo fantasmagoria ao espectro humano – um ser cuja luz parece apagar-se. Como disse Fabiana Barcinski, “essas pinturas são perturbadoras, nada lembram as construções distintas, elegantes, que o artista produziu com tanto afinco na década precedente”. Serpa reconhecia essas telas como documentos de uma época, de um momento histórico. Não há como não lembrar de torturas, confinamentos, barbárie diante da agonia dessas figuras desesperadas. Diante da urgência de falar do mundo real, não havia como manter-se nas pesquisas sobre forma e equilíbrio sem sentir-se alienado em seu cotidiano. As telas da série Crepuscular, por esse motivo, fazem parte da sua fase mais figurativa, de modo que o espectador imediatamente reconhece do que se está falando. A comunicação, portanto, dispensa grandes decodificações teóricas e, assim, a relação entre arte e vida impunha-se finalmente como prática. Nas palavras de Marcus de Lontra Costa, uma verdadeira obra de arte revela novas realidades e amplia descobertas. “Da miséria existencial humana, passando pela decadência de uma utopia não concretizada, até o prenúncio de anos de chumbo na vida brasileira, a arte será sempre o oráculo, a bússola, o espelho.” Esse é, sem dúvida nenhuma, o caso das pinturas “Crepusculares” de Serpa, que se afirmam substantivamente no cenário das imagens expressionistas brasileiras.

Sem título, série Op-erótica

Nanquim sobre papel 111x81cm

Ivan Serpa

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Sem título, série Op-erótica, 1970 Nanquim sobre papel 111x81cm Apesar de ter ganhado força na metade da década de 1950, a Op Art passou por um desenvolvimento relativamente lento. O termo Op Art, que vem do inglês “Optical Art”, ou arte ótica, tornou-se popular por seu uso em um artigo de revista Time, de 1964. A premissa do movimento estava toda centrada no olhar do espectador, podendo ser definida pelo conceito de “menos expressão e mais visualização”. No entanto, ainda que traga rigor na sua construção, a arte ótica simboliza um mundo precário e instável, que se modifica a cada instante. Os movimentos da pop art, por sua vez, mais ou menos na mesma época, reverberaram intensamente por todo o mundo, valorizando as chamadas vanguardas negativas, como o surrealismo e o dadaísmo. No Brasil, esses movimentos adquirem um caráter político mais intenso e uma nova geração surge no cenário da arte com imagens contundentes, repletas de violência e sensualidade. Serpa, homem de seu tempo, capta esse novo cenário e dele se apropria à sua maneira. Ele retorna à geometria e à abstração, realizando obras como a que observamos, parte da série Op-erótica. Nessa fase, o drama existencial da fase “Crepuscular” cede lugar a uma sensualidade tensa, rigorosa. Os trabalhos op-eróticos reuniam elementos aparentemente incompatíveis entre si, fantasmas eróticos e os jogos ópticos, possuindo o apelo erótico da pop art e o rigor formal da op art. A sinuosidade das formas pretendidas por Serpa para esta série é uma alusão às formas do corpo feminino, repleto de curvas, dobras, movimentos circulares, abrigo de uma alma barroca. Ao mesmo tempo, as imagens jogam com o olhar do espectador, dependendo do ângulo e da distância. Estão em voga, portanto, noções de tridimensionalidade, movimento, contrastes, formas e linhas geométricas, vibração e abstração. Com cuidadosa fatura em preto e branco e em bico de pena sobre papel, o resultado são belíssimos desenhos, muitas vezes acompanhados das datas de início e término da obra, o que poderia levar muitos dias. Pontinho por pontinho, Ivan criava nuances, sombreados, volumes, que iam do preto mais profundo ao simples alvo do papel em formas sinuosas que muitas vezes sugerem partes sensuais do corpo. Se observarmos com cuidado, veremos curvas que lembram ancas, axilas, orifícios cavernosos como vaginas ou ânus e até mesmo formas fálicas, realizadas num emaranhado de micropontos que, unidos, sugerem caminhos rendilhados de negro e branco, numa obra de meticulosidade e paciência impressionantes. É possível notar que as características dessa fase Op-erótica encontram origem em trabalhos realizados anos antes. As linhas sinuosas conectadas em forma de raiz e o pontilhismo remetem à observação da ação dos cupins e brocas em livros antigos, suas trajetórias microscópicas, delicadas filigranas, pequenos labirintos. O erotismo da fase “bichos e mulheres” está também presente, em formas mais discretas e elegantes. A imagem do centro parece sólida e lembra uma letra “S” ao contrário, remetendo à fase de letras e figuras. De qualquer maneira, em toda sua vasta produção, o que se vê é um artista inquieto, rigoroso, completamente independente de modismos e comprometido com a construção artística que lhe interessa realizar.

Arca I

Móvel em madeira, interior com recortes de madeira pintada e espelhos 73cm alt x 132cm larg x 53,5cm prof

Ivan Serpa

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Arca I, 1970 Móvel em madeira, interior com recortes de madeira pintada e espelhos 73cm alt x 132cm larg x 53,5cm prof Em 1967, Ivan Serpa iniciou a série Op-Erótica, que marcou seu retorno à linguagem construtiva. Interessado na op art, Arte Óptica, ele retomou a construção geométrica e os elementos bem definidos, tendo desenvolvido também outras séries com essa característica, como Mangueira e Amazônicas. Essas obras o levaram às Arcas, móveis com formas brancas no seu interior que, por sua vez, deram origem às pinturas Geomânticas, a partir de 1969. No final da década de 1960 e início dos anos 1970, Serpa teve uma ideia fantástica: transformar móveis da sua propriedade em objetos/obra. Assim nasceram os dois grandes baús presentes nesta exposição, que mostram, no interior, um fascinante labirinto criado pelo artista. Em uma arca encontram-se formas orgânicas e arredondadas, trabalhadas em recorte de madeira pintada de branco e que convivem com jogos de espelho; numa outra grande canastra, recortes mais geométricos do mesmo material e acabamento que igualmente se refletem em superfícies vítreas espelhadas. Há ainda, nessa série, um pequeno baú que ficou por terminar e um armário que ainda guarda vestígios de obra inacabada. O artista não chegou a finalizar a criação do conjunto, que seria acompanhado por móveis que estavam no dormitório do casal Serpa. Segunda sua esposa, Ivan pensava até mesmo em trabalhar a cama na qual dormiam. As estratégias da pop art atuam no artista como afirmação da liberdade e como instrumento essencial da criação artística, mas foi através de certos processos, oriundos da op art, que Serpa reencontrou, ainda na década de 1960, a imposição da ordem, do ritmo, da modulação e da gráfica que marcam a estética da arte geométrica. Assim, as Arcas construídas pelo artista adquirem um caráter simbólico, como se o artista estivesse, com elas, abrindo os seus arquivos mentais, os seus processos construtivos, a sua essência, na busca de refazer o mundo, através da ordem e da simetria.

Sem Título

Óleo sobre tela 200x130cm

Ivan Serpa

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Sem título, 1972 Óleo sobre tela 200x130cm Ivan Serpa, de maneira contundente, sintetiza em sua própria personalidade, a essência poética de uma nova estética modernista e tropical, sensível, veloz, construindo paisagens construtivas nas quais a geometria é a ferramenta essencial, gesto primeiro, o espaço artístico compreendido como elemento organizador do caos da percepção, ordem, método, kósmos. Este quadro pertence à série chamada “Mangueira”, cujas cores exploradas e trabalhadas, remetem à escola de samba carioca de mesmo nome, da qual o artista era declaradamente fã. Como diz a letra para Exaltação À Mangueira por Jamelão, “Mangueira teu cenário é uma beleza / que a natureza criou!” Todos os quadros pertencentes a esta série são, portanto, estudos de formas similares sobrepostas com variações cromáticas de verdes e rosas, as cores da Mangueira. Nessa fase, o que poderia ser dança e ritmo se tornou um carnaval cadenciado, mas contido em geometria rigorosa. São composições clássicas, que prezam por elegância, simplicidade, equilíbrio e denotam o retorno do artista às experimentações construtivistas já quase na fase final de sua carreira. Nas palavras do próprio artista, “Nunca há nada de realmente novo. O novo é algo do passado que foi escolhido outra vez. O que existe, sempre, é uma retomada de posição.” Já no que seria um de seus últimos anos de vida, em 1971, ele disse que nada o distanciava de alguém que só agora começasse a pintar. Ivan Serpa foi esse artista urgente e de curiosidade permanente.

Sem título, série Geomântica

Óleo sobre tela 202X136cm

Ivan Serpa

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Sem título, série Geomântica, 1972 Óleo sobre tela 202X136cm A partir de 1969, o pintor adentrou uma fase geométrica que privilegiava círculos, mas também pequenas formas quadradas. Chamou a série de Geomântica, uma fase mística que acabou sendo sua fase final. Ivan trabalhou nestes quadros até 1973, quando veio a falecer de ataque cardíaco e derrame, com apenas 49 anos. Esperançoso por mais dias de vida, Ivan investigou oráculos e geomancia, uma espécie de adivinhação por meio de figuras traçadas no solo, usando pedras que, quando soltas, desenhavam formas como respostas. Esta sequência de trabalhos conta com um conjunto em óleo sobre tela com dimensões iguais, formando pinturas irmãs, confeccionadas em tons de azul e verde. Outros trabalhos, como num tabuleiro de xadrez, exibem pequenos pontos como cruzes enigmáticas, quase como uma disputa do tabuleiro da vida. A partir das obras, pode-se dizer que o mestre parecia buscar nas formas oraculares uma afirmativa que talvez o descanso eterno tenha lhe trazido. Depois de tantas imagens, tantos trabalhos, tantas paisagens e tantos mundos que criou em apenas duas décadas, Serpa retorna parabolicamente ao seu princípio, à sua essência. Mas não se trata, em momento algum, de um reencontro com princípios racionais rígidos, nem de representações amarguradas de um tempo que não volta mais. A geometria, em Ivan Serpa, é ferramenta para organizar a paisagem, arar e fazer germinar o terreno da arte, entendendo-a como ação essencial da espécie humana: criar, inventar e transformar. A paisagem do mundo que surge dessa poética geométrica do artista é tropical, repleta de rosas, de verdes e marrons, amazônicos, de artesanato e de cultura popular, sentimentos genuínos. E assim são as telas do artista, sem nenhum apelo saudosista. Ao contrário, em seu comprometimento com o sentimento e a estética popular, o artista cria um novo significado para a ação construtiva, dando-lhe direcionamento prospectivo, quase premonitório. Quando perguntado sobre sua multiplicidade de estilos, Ivan diz: “Gosto de renovar, porque fazer arte, para mim, é pesquisar constantemente. Dizem que mudo demais. Acontece que sou honesto comigo próprio. Mudar faz parte do meu temperamento irrequieto, e depois só se muda quando se tem algo a dizer com essa mudança, quando se tem possibilidades, quando se domina o artesanato, o que justifica um ato normal de evolução. Mudar é preciso, é inerente ao ser que pensa, vive, ama, sofre.”

Material Educativo

Ivan Serpa

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O Ministério do Turismo e o Banco do Brasil apresentam e patrocinam Ivan Serpa: a expressão do concreto, ampla retrospectiva de um dos artistas mais importantes da arte moderna e contemporânea brasileira. Após passar pelo Rio de Janeiro, a mostra segue para Belo Horizonte e São Paulo. A exposição, com curadoria de Marcus de Lontra Costa e Hélio Márcio Dias Ferreira, exibe obras oriundas de diversas coleções das várias fases do pintor abrangendo sua multiplicidade estética e técnica. Pinturas do período concretista; peças de caráter expressionista, da fase Negra, que o artista preferia denominar Crepuscular; obras das fases Op-Erótica, Amazônica, Mangueira e Geomântica revelam um aspecto místico do artista. A trajetória de Serpa, ainda que breve, deixou uma marca significativa na história da arte nacional, graças à sua sensibilidade, liberdade e ousadia. Ao apresentar este projeto, o CCBB reafirma o seu compromisso com o acesso à arte por meio do trabalho de um dos expoentes do modernismo no país e a sua contribuição para a identidade cultural brasileira. Centro Cultural Banco do Brasil